Antes de começar o assunto propriamente dito, convido a você leitor a uma experiência de imersão, então, segue uma pequena ambientação onde o objetivo é te transportar para o cenário proposto.
Prólogo
Antes do Raiar do dia, a névoa anunciava a alvorada em Edimburgo, enquanto muitos ainda dormiam, o Alojamento de Pedreiros responsáveis pela remodelação pela Abadia de Holyrood já estava em completo alvoroço. Os pedreiros que ali estavam, auxiliados pelas lanternas a óleo e em formato de duplas faziam o que mais parecia um jogo de perguntas e respostas. O que parecia uma brincadeira na verdade era uma preparação para o teste geral de seus conhecimentos que aconteceria em breve no canteiro de obras.
Giuseppe, um companheiro vindo do Reino de Nápoles, no alto de seus 26 anos, nunca tinha presenciado algo tipo, quanto mais ser testado em sua guilda de origem. Um misto de confiança, excitação e insegurança pairava em seu espírito, pois estava nessa grande obra por se destacar dos demais em sua terra natal e sabia de sua capacidade intelectual, mas ali seria posto a prova como companheiro de ofício. William, o filho de Mestre do Alojamento o ajudava com a variação da língua e o entendimento moral que dava significado aos instrumentos de trabalho que utilizavam.
Na metade do dia, aquele grupo de ofício já estava no canteiro, cinzéis ricocheteavam nas pedras, lixas davam forma a madeira e o tilintar geral das ferramentas eram a música que Guiseppe precisava para se inspirar. O jovem de Nápoles, trajado de vestes marrom e um pesado avental de couro que ia do peito aos joelhos trabalhava uma talha na nave principal quando reparou que o tilintar cessou, deixou o formão e o maço que utilizava no chão e ao se virar avistou o Vigilante da loja de Kilwinning adentrar no recinto, então seu estômago embrulhou e se sentiu enjoado, passou a mão na testa que a essa altura já molhava sua franja de suor. Giuseppe disse para si mesmo “Calma, é só um teste…”. O que preocupava o napolense não era a penalidade em dinheiro que teria que pagar caso não passasse, mas o sentimento de que pudesse fracassar e não consolidar sua fama de ótimo artífice que tinha entre seus pares. A calmaria durou pouco segundos, mas para Guiseppe, assim como para muito de seus companheiros foi uma eternidade. Logo a barulho cotidiano voltou e novamente acalmou o seu coração.
Para alívio dos companheiros o teste começou pelos aprendizes, que era realizado na antiga sacristia e tinha uma porta robusta de sorveira, o teste durava cerca de um quarto de hora. Alguns saíam com cara aliviada, outros felizes e um ou outro com expressão de tristeza desencorajadora.
Após terminar o teste com os aprendizes já era quase hora do almoço, então o Vigilante de Kilwinning deu uma pausa e anunciou que os testes voltariam após a refeição. Durante o banquete alguns aprendizes relatavam horrível experiência pela qual tinham passado, outros porém estavam mais tranquilos pois não tinha sido a primeira vez, afinal os testes foram instituídos cerca de trinta anos antes, Giuseppe estava tão nervoso que não conseguiu dar mais do que duas colheradas em sua refeição. Os trabalhos retornaram quando o sol já estava no zênite, o tilintar das ferramentas era novamente a sinfonia que regia os trabalhos e o primeiro companheiro a ser chamado tinha sido William. Era costume que o companheiro que já tivesse passado pelo teste ao sair pela porta chamasse o próximo e para que não influenciassem nas respostas do demais estaria dispensado dos trabalhos naquele dia. William saiu pela porta da antiga sacristia e gritou “Companheiro Gioseppe Valentim”, novamente o estômago do napolense grudou em suas costas, mas inspirou fundo e foi.
Ao adentrar a porta, foi fitado pelo Vigilante, que aparentava uns 60 anos, era calvo, e o pouco cabelo que tinha como sua barba rala eram brancos como a neve. Sentava atrás de uma corpulenta mesa e parecia anotar algo em um pesado livro com sua caneta de pena, cuja ponta de tempo em tempo era umedecida no tinteiro que estava a sua frente. Ao perceber a entrada do jovem companheiro perguntou:
– Nome?
– Gioseppe Valentim
– Um estrangeiro, que surpresa! A quanto tempo se encontra como companheiro de ofício?
– Três anos em Nápoles e um ano aqui.
– Ora ora, dizem que os artífices de Nápoles são bons, perdendo apenas para os escoceses é claro. Veremos se a sua retórica é tão boa quanto suas habilidades manuais.
Nesse momento, novamente a testa de Gioseppe ficou molhada, e seu coração pulsava na garganta. O questionário começou e para sua surpresa ele dominava o assunto completamente, principalmente quando demandava respostas técnicas, tais quais as fórmulas matemáticas que envolvia o ponto dentro do círculo e depois a sua representação moral. Até que as perguntas se aprofundaram para uma simbologia estritamente escocesa.
– Creio que você não veio se aprimorar na Escócia apenas no ofício, mas também nas artes que o circundam, afinal até mesmo quem não é pedreiro de ofício nos procuram para aprender nossa filosofia. Correto?
– Sim senhor – respondeu o jovem companheiro, e continuou – O mestre de meu Alojamento em Nápoles é Escocês e não possui filhos, como ele decidiu que quando ele se for assim como o sol se põe, eu herdarei a sua oficina, então me enviou para cá, para que eu pudesse aprender a ser um legítimo pedreiro escocês.
– Bem, escocês você nunca será, mas já que foi aceito aqui, aprenderá toda nossa arte – respirou e continuou o questionário – Onde deverá achar a chave para seu Alojamento?
– A três pés e meio da porta, sob uma lápide e um torrão verde, mas também sob o lóbulo de meu fígado, onde descansam todos os segredos do meu coração.
– E qual a chave de seu Alojamento?
– Uma língua bem segura.
– E onde ela está?
– Na caixa de ossos.
– Bem, fiquei realmente satisfeito. Como eu disse anteriormente, você nunca será um escocês legítimo porque não corre sangue gaélico em suas veias, mas não significa que não possa ser o melhor pedreiro estrangeiro da Escócia – Disparou o velho escocês – Acompanharei o seu progresso. Até breve, agora saia e me chame o seu companheiro Charles Wood.
– Obrigado senhor – Respondeu Gioseppe se levantando, agora feliz e com o espírito aliviado.
FIM
Após essa pequena fábula que escrevi para dar um suporte e instigar a imaginação de como viviam os maçons operativos do século XVII, vamos ao ponto principal, a Arte da Memória.
A ARTE DA MEMÓRIA E SUA RELAÇÃO COM A MAÇONARIA
William Schaw (1549 – 1602) foi mestre de obras da coroa Escocesa e Supervisor Geral dos Maçons naquele país a partir de 1583 até a data de sua morte, sendo responsável pela construções e reparações de castelos no reinado do Rei James Stuart VI, sendo assim elaborou os estatutos para regular a prática da cantaria. O primeiro estatuto em dezembro de 1598 e o segundo, do qual trataremos parte aqui datado de 28 de dezembro de 1599. A “cláusula” importante para o estudo a ser desenvolvido hoje é a 13ª, que será reproduzida agora com tradução livre do Irmão Luciano Rodrigues e Rodrigues (2016), disponível em seu blog “O Prumo de Hiram”.
“É estabelecido pelo vigilante geral, que o vigilante da loja de Kilwinning, sendo a segunda loja na Escócia, irá testar todos os companheiros do ofício e cada aprendiz, sobre a arte da memória e ciência, de acordo com suas vocações, e no caso de terem perdido qualquer ponto exigido deles, eles devem pagar a penalidade da seguinte maneira por sua preguiça, isto é, cada companheiro do ofício, vinte xelins, cada aprendiz, dez xelins, a ser pago ao caixa para o bem comum, anualmente, e em conformidade com o uso comum e prática das lojas neste reino.”
Vimos aqui que os exercícios de memorização de fórmulas já eram cobrados desde que o ofício era operativo. Importante salientar que essa memorização poderia ser tanto de fórmulas para o exercício da construção quanto ensinamentos morais praticados nas corporações de ofício.
Carlos Alberto Mourão Júnior e Nicole costa Faria (2014) sobre Memória, definem em suas palavras “a grosso modo” no artigo PROCESSOS PSICOLÓGICOS BÁSICOS – Memória “(…) chamamos de memória a capacidade que os seres vivos têm de adquirir, armazenar e evocar informações.”.
Ainda no mesmo artigo:
“(…) O que se sabe, atualmente, é que as informações que chegam ao nosso cérebro formam um circuito neural, ou seja, a informação recebida ativa uma rede de neurônios, que, caso seja reforçada, resultará na retenção dessa informação (por informação, entendemos qualquer evento passível de ser processado pelo sistema nervoso: um fato, um objeto, uma experiência pessoal, um sentimento ou uma emoção). Por isso considera-se que a repetição seja uma estratégia necessária para a memória. Não nos esquecemos, por exemplo, o número do telefone de nossa casa porque, ao longo de nossa vida, repetimos essa informação inúmeras vezes. Esse processo interfere na memorização do número exatamente porque toda vez que repetimos os estímulos, ativamos o mesmo circuito neural. A ativação contínua reforça esse circuito e torna mais fácil a posterior evocação da informação armazenada.
Na Maçonaria, em todos os sistemas, existem catecismos, ou seja, perguntas e respostas, e uma vez iniciado, devido as constantes repetições, o Maçom acaba memorizando uma grande gama de informações, como por exemplo o telhamento (trolhamento) no Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA).
(…)O armazenamento é possível graças à neuroplasticidade, que pode ser definida como a capacidade que o cérebro tem de se transformar diante de pressões (estímulos) do ambiente.(…)
Ainda utilizando o REAA como exemplo, em inúmeras vezes vemos a loja fechada e os irmãos por pressão do ambiente circulando de forma ritualística.
Um fenômeno muito interessante relacionado às memórias e que merece ser mencionado é o priming (também conhecido como pré-ativação). O priming é, na realidade, um tipo de memória induzido por pistas ou dicas. Às vezes estamos tentando lembrar de uma música ou de um poema, e não conseguimos. Porém, se alguém cantarolar para nós as primeiras oitavas da música ou recitar para nós o início dos primeiros versos do poema, quase instantaneamente nos lembramos de todo o restante, como se fora uma reação em cascata. De fato, parece que, muitas vezes, só nos lembramos de onde está um prédio quando dobramos a esquina anterior à sua localização. Da mesma maneira, um animal só consegue lembrar da saída do labirinto na medida em que vai percorrendo o mesmo – cada etapa serve de pista para a etapa seguinte (Lashley, 1963).”
Conforme o exemplo dado por Júnior e Farias, muitas das vezes acontece o fatídico “branco”, mas basta qualquer irmão soprar a primeira palavra para que o agente que executa a fala, lembre de todo o restante da oração gramatical.
Os autores concluem o artigo falando da dificuldade de se estudar a arte da memória que são duas, ou seja, que as memórias estão ligadas a outros processos cognitivos (precisam de um gatilho), e segundo que o sujeito é quem decide se vai lembrar de algo ou não. (nesse texto, provavelmente você irá guardar apenas o que deseja ou lhe seja interessante).
Existem diversas técnicas para se memorizar, mas uma constante em quase toda matéria sobre memorização é atribuir algo a imagens, mesmo que de forma bizarras. E o que isso tem haver com Maçonaria? Tudo! Toda memorização em Loja Maçônica é extremamente visual. Um grande exemplo disso é a coluna B, ao vê-la automaticamente o maçom lê “força, moral e apoio”. Isso significa que muito antes dos workshops de memorização e livros volumosos de técnicas diversas, os maçons operativos já praticavam o “pulo do gato” faz tempo.
CONCLUSÃO
Um “chavão” popular diz que “Os grandes prazeres da vida, estão nas pequenas coisas”. Vimos que os Maçons Operativos bolaram um “esquema” incrível para memorizarmos nossas fórmulas, mas não somos levianos de dizer que são apenas simples combinações para nos identificarmos como irmãos ou perguntas e respostas vazias como uma tabuada. Nos pequenos símbolos que utilizamos existem poderosos ensinamentos filosóficos que não se resumem a apenas ao significado imediato, então quando falamos, por exemplo, sobre o Maço, ele não significa simplesmente força, ele tem um significado sublime de uma força utilizada com inteligência, mesmo porque, quando o Maço se aplica apenas com violência a pedra da construção se parte e não se lapida. Posso citar inúmeros exemplos de grandeza filosófica para cada símbolo, mas além de Pike já ter feito isso em páginas e páginas em seu livro Moral e Dogma, apenas para explicar o conceito de duas ferramentas, a idéia aqui não é enveredar para o significado de nosso simbolismo. A grande e real questão é: conseguiram ensinar filosofia e moralidade a homens simples que em sua maioria eram analfabetos através de suas ferramentas e suas atividades laborativas. Mas porque? O ofício de pedreiro era uma mão de obra qualificada e escassa, tanto é que pedreiros viajavam de uma obra para outra, e pertencer a uma guilda de construtores significava que o indivíduo carregava o nome da corporação, necessitando que esse sujeito tivesse uma moral elevada de forma a ser sempre um cartão de visitas ambulante, por isso a preocupação dos dirigentes na escolha, formação e caráter do pedreiro.
Referências
RODRIGUES, Luciano Rodrigues e. O Segundo Estatuto de Shaw (1599). Disponível em: https://www.oprumodehiram.com.br/o-segundo-estatuto-de-william-schaw-1599/. Acesso em junho de 2019.
JÚNIOR, Carlos Alberto. FARIA, Nicole costa. PROCESSOS PSICOLÓGICOS BÁSICOS – Memória. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722015000400017#aff1. Acesso em setembro de 2018.
Imagem de capa: Abadia de Holyrood. Disponível em: https://www.historicenvironment.scot/visit-a-place/places/holyrood-abbey/. Acesso em junho de 2019.
Uma resposta em “Pequeno ensaio filosófico sobre a Maçonaria e a incrível arte da memória”
Parabéns e obrigado por nos proporcionar o texto acima. Espero por mais.